Fanatismo Religioso X Negligência Médica: O Caso de Anneliese Michel (Emily Rose) — Reportagem

Josué Ernandes
6 min readApr 8, 2023

--

Diagnosticada com epilepsia em 1969, a jovem começou a ver figuras demoníacas, todas as vezes que tentava rezar. Anneliese passou por 67 sessões de exorcismo até morrer por desnutrição e desidratação. É um caso que mistura ciência e religião

Legenda: Imagens da Annelise durante sessões de exorcismo

Anneliese Michel nasceu em 21 de setembro de 1952, em Leiblfing, na Alemanha da Baviera. Filha de Anna e Joseph Michael, Anneliese foi criada em um ambiente extremamente religioso, ao lado de suas três irmãs. Joseph tinha considerado ser padre e, antes de Anneliese nascer, sua mãe teve uma filha fora do casamento. Na época, ela foi forçada a se casar com um véu preto. Como penitência, Anneliese foi obrigada a ser devota fiel, afim de eliminar os pecados da mãe.

Em 1968, aos 16 anos, Anneliese começou a apresentar sintomas e comportamento que foram diagnosticados como epilepsia aliado a um quadro de esquizofrenia. Aos 17 anos, a jovem sofreu uma convulsão. Em 1969, Anneliese teve o primeiro ataque epiléptico. Em um quadro clínico, Anneliese foi diagnosticada com epilepsia “Grand Mal”, um tipo de convulsão que envolve perda de consciência e contrações musculares violentas. A jovem foi internada no Hospital psiquiátrico de Mittleberg, passou um ano, saiu e se matriculou na Universidade de Wurzburg, onde estudou pedagogia e teologia.

Durante o período na Universidade, Anneliese entrou em uma depressão profunda quando começou a escutar e ver figuras demoníacas. Enquanto tentava rezar, Anneliese entrava em convulsão. Assustada, a jovem chegou a procurar médicos, visto seu histórico de problemas neurológicos. Os médicos receitaram psicotrópicos Aolept e Tegretol. A medicação não evitou as crises de convulsão e muito menos fizeram desaparecer as vozes demoníacas. Sem repostas, a jovem e os pais começaram a acreditar numa possessão demoníaca. Com isso, ela interrompeu o tratamento e parou de tomar os medicamentos.

Legenda: Anneliese com a sua família

Durante os anos 1970 até 1973, o estado de Anneliese piorou. Ela bebia a própria urina, agia com agressividade, se machucava, passou a andar nua pela casa, comia insetos e até latia. O caso de Anneliese começou a se espalhar, e a comunidade católica na qual a família frequentava estava convecida de que se tratava de uma possessão. Em 1973, os pais dela resolveram consultar diversos padres para um possível exorcismo, sendo negado em todas as vezes. A igreja mandava a família buscar ajuda médica para que Anneliese continuasse com o tratamento.

Durante os meses seguintes, Anneliese e a família participaram de uma peregrinação à cidade de San Damiano, no norte da Itália. Uma das freiras afirmou, de acordo com um artigo publicado pelo “The Washington Post”, em 1978, que a jovem não conseguia passar por um crucifixo, se encolhia com imagens católicas, não conseguia entrar no santuário porque os pés queimavam como se estivesse pegando fogo e se recusava a tomar água benta.

Com todas esses episódios, os pais de Anneliese, mais uma vez, decidiu contatar a igreja Católica para uma sessão de exorcismo. Em 1973, a igreja revelou que, para uma cerimônia de exorcismo, os pais de Anneliese teriam que ter uma autorização de um bispo da igreja. Eles apresentaram um diagnóstico de epilepsia, emitido pela médica neurologista Irmgard Schleip, que tratou Anneliese de 1973 a 1975.

Com isso, o clero encarregou o padre Adolf Rodewyk para redigir um relatório teólogo sobre o caso. No documento, o padre relatava que a jovem estava possuída e que precisava de um exorcismo. Mas, a permissão só foi adiantada porque o padre Ernst Alt viu a jovem e acreditou que ela estava possuída. Ele, pessoalmente, levou o pedido até o bispo da região, Josef Stangl, que concedeu ao padre local, Arnold Renz, a permissão de exorcizar a Anneliese. E detalhe: tudo isso em sigilo absoluto.

Legenda: Anneliese antes e depois das sessões

Foi a partir de 1975 que a vida de Anneliese piorou. O bispo Josef Stangl recebeu o relátorio e encarregou dois clérigos, Arnold Renz, na função de exorcista principal, e padre Ernst Alt, como auxiliar, a iniciarem o procedimento de exorcismo, com base no Rituale Romanum — um livro litúrgico sancionado pela Igreja Católica Romana que contém todos os rituais formais, administrados por um padre, para exorcismo.

Durante 10 meses, Anneliese foi submetida a 67 sessões de exorcismo, alguns com duração de até 4 horas direta. As sessões aconteciam na casa da família, em Klingenberg, no início da noite, para que os conhecidos que trabalhavam durante o dia pudessem assistir às sessões. Durante os rituais religiosos, Anneliese foi orientada pelos padres a voltar a usar os medicamentos, como estabilizador.

Nas sessões, documentadas em 40 fitas de áudio, Anneliese jogava objetos contra a parede, latia como um cachorro, defecava no chão e ria estridentemente. Em um dos episódios mais bizarros, Anneliese apresentou uma voz masculina e confessou que estava possuída por 6 demônios, nos quais os padres batizaram de “Faces do Diabo”: Lúcifer, Caim, Judas, Nero, Hitler e Padre Fleichmann, um padre que caiu em desgraça no século XVI. De acordo com relatos dos padres, os seis demônios teriam sido exorcizados em 31 de outubro de 1975, dia do Halloween.

Legenda: Jornal da época noticiando o julgamento no caso de Anneliese

As sessões não surtia efeito, e Anneliese ficava cada vez mais irritada e agressiva. Novamente, ela foi aconselhada a parar com o tratamento médico, ficou sem comer e beber líquidos, acreditando que deixaria os demônios sem força, e rompeu os ligamentos de seus joelhos com as genuflexões — ato de reverência — enquanto realizava as sessões.

Em uma das noites, Anneliese relatou que sonhou com a Virgem Maria, que teria lhe dado a opção de ser libertada do sofrimento, ou continuar com os demônios para que todos soubesse que o mundo espiritual e as ações demoníacas realmente existem. Ela teria decidido ser libertada do sofrimento.

A condição de Anneliese piorou na Sexta-feira Santa de 1976, de acordo com os pais. Em 30 de junho de 1976, extremamente magra, Anneliese recebeu a absolvição do padre Renz. No dia seguinte, em 01 de julho de 1976, Anneliese veio a óbito. Os médicos não conseguiram determinar uma causa natural de imediato. Uma autópsia foi realizada e determinou que a causa da morte era desnutrição e desidratação, causados, principalmente, pelas sessões de exorcismos em que Anneliese ficava sem comer ou beber água.

Pais de Anneliese durante seu sepultamento
Da esquerda para a direita: Arnold Renz e Ernst Alt (Padres) e Anna e Joseph (Pais de Anneliese), durante o julgamento

O Estado abriu um inquérito para começar a investigação no caso que ficou conhecido como “Caso Klingenberg”, e promoveu uma discussão entre religiosos e profissionais da saúde, onde afirmavam a teoria da suposta possessão demoníaca e um caso de doença mental tratada inadequadamente.

Em 30 de março de 1978, durante o julgamento, os promotores públicos responsabilizaram os padres, Arnold Renz e Ernst Alt, e os pais de Anneliese, Anna e Joseph Michael, de homicídio culposo causado por negligência médica. Foi determinada uma sentença de 6 meses com liberdade condicional sob fiança. O bispo que autorizou o exorcismo, Josef Stangl, não foi levado a julgamento pelo estado crítico de saúde e idade avançada.

Quase dois anos após a morte de Anneliese, seu cadáver foi desenterrado, a desejo dos pais, para ser descolado a um caixão de carvalho. Essa foi uma desculpa que os pais da jovem usaram para verificar como o corpo da menina estava, após uma freira Carmelita do Sul da Baviera ter dito aos pais que teve uma visão, em que o corpo da filha ainda estava intacto. Relatórios da época afirmam que o corpo exumado apresentava deterioração.

Em 2013 a casa dos Michel, onde foram realizadas as sessões de exorcismo, pegou fogo. Apesar de se tratar de um incêndio criminoso, muitos religiosos atribuíram o episódio aos exorcismos.

--

--

Josué Ernandes
Josué Ernandes

Written by Josué Ernandes

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Cariri, Criador do perfil de notícias "Falsa do Pop" e amante de histórias de Hollywood e cultura pop

No responses yet